Rita Barata, "O Desabar do Refúgio" 2019, serigrafia a duas cores, 93 x 50 cm.
O desabar do refúgio Há um ou dois anos tirei um tríptico de fotografias aos prédios abandonados das traseiras do prédio onde moro. Estão abandonados desde que me lembro e vivo nesta casa desde os meus dois anos. Quando comecei a trabalhar neste projeto, não sei bem porquê, lembrei-me deste tríptico e fiz um desenho a partir do mesmo. Agora sei porque o fiz. É que no começo destas férias de verão estes três prédios abandonados começaram a ser demolidos, por três empresas diferentes, mas coincidentemente, todos ao mesmo tempo. Neste mesmo início de verão, ainda que por outras razões, os meus pais decidiram que íamos mudar de casa. E no meio disto tudo iniciei um processo de transformação em mim mesma, que começou com relativa lentidão, mas desde que a escola começou, tem vindo a acelerar a passos largos. Apesar destes três acontecimentos serem coisas distintas, estão, para mim, inegavelmente conectados. Quando inicialmente pensei em mudar de casa, neguei a ideia logo à partida. Que ideia parva, agora, ao fim de quinze anos a construir um apego e carinho especial por estas paredes, ter de dizer adeus... Parecia-me impossível. Mas os lindos e podres prédios estagnados que eu tanto gostava de observar começaram a cair e, de repente, a sensação de apego por todo este território envolvente do meu lar começou a despedaçar-se e a desabar, em conjunto com os próprios prédios. Senti-me empurrada para fora do meu refúgio.
Estes prédios velhos que observo, desde que tenho memória, estavam parados, nada se passava. Apenas cortinados rasgados abanavam ao sabor do vento. E gavetas abertas na cozinha evidenciavam momentos por acabar uma vida deixada a meio. Tudo isto me atraía de certa forma. Trazia um conforto inexplicável mas também uma certa amargura, por estar tudo velho e estragado e não ter movimento humano. Por estas mesmas razões, mais cedo ou mais tarde, estes prédios teriam de cair. Impediam-me de ver outros elementos e pormenores da paisagem porque os estavam a tapar ou porque simplesmente desviavam a minha atenção. Dentro de mim também tinha e tenho partes velhas e estagnadas que precisam de ser demolidas e substituídas para que eu me possa observar com outros olhos. Assim, ao longo deste processo de desconstrução, fui eu também sendo desconstruída porque, ao olhar para aqueles prédios, fui, aos poucos, começando a tornar-me parte deles e, ao vê-los cair, foi como ser exilada deste território ao qual pertencia. Já nada parece igual. Agora, sendo tudo aquilo apenas tijolos, madeira, tinta e cimento, a paisagem é diferente e não vejo mais razões para ficar, ou, pelo contrário, vejo mais motivos para mudar. Eu própria já não sei bem o que sou e neste momento sinto-me exilada do meu próprio refúgio. Exilei-me cá dentro antes de mudar fisicamente para outro sítio e agora, só vou sentir-me novamente confortável quando estiver no meu novo território de conforto. Este sentimento de não pertencer foi sendo cada vez mais forte desde que as aulas começaram. Os prédios já tinham desabado e iniciava-se agora um processo de reconstrução, assim como eu estava a voltar à mesma rotina de sempre, estando no entanto mudada por tudo o que havia experienciado nas férias e por isso sentindo que já não me encaixava.
Aquilo que antes fazia sentido agora já não fazia sentido nenhum. No fundo, estes prédios, aos quais me apeguei, representam as partes do meu crescimento às quais me apeguei também. Nunca fez muito sentido estarem ali, lá está, mais cedo ou mais tarde elas teriam desabar, mas até há pouco tempo ainda eram aceitáveis e eu deixava-me conformar com elas. Mas ao ver as coisas a mudar no exterior, à minha volta, senti que finalmente podia deixá-las ir. Como se algo estivesse errado há muito tempo, sendo ainda, no entanto, passível de se viver com, mas agora há urgência e sede de mudança. Posto isto, ao desenhar esta paisagem que tinha capturado há alguns anos,usei o azul nas nuvens para representar o conforto que sempre senti para com este território, apesar das claras inseguranças. O vermelho nos prédios abandonados representa essas mesmas falhas, inseguranças e defeitos, ou seja, a instabilidade que sempre esteve presente. Como uma muleta que não, segurava completamente, pois tinha medo que caísse. Mas, uma vez desabada, levou-me a compreender a sua insignificância, pois agora consigoestar de pé sozinha. Fiz ainda alguns esboços utilizando estas duas cores de uma maneira mais disforme e abstrata, mas acabei por selecionar, como proposta final, um tríptico que fiz a pastel de óleo. É uma versão mais expressiva do desenho original, no qual torno os prédios mais tortos e agressivos e as nuvens mais suaves e confortáveis. Acabei por virar todo o trabalho ao contrário pois acho que a composição resulta melhor assim, torna-se mais leve. Apesar do trabalho o representar o desabar do meu próprio refúgio, não o queria retratar de maneira pesada e negativa, pois, no fundo, todos passamos por este tipo de processos, ainda que de maneiras diferentes.
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